segunda-feira, 24 de agosto de 2015

O sentido da vida é só cruzar

Um cruzamento é, numa perspectiva simplista, a intersecção de duas linhas. No futebol, as linhas que constituirão um cruzamento serão a percorrida pela bola, mais ou menos paralela à linha de golo, e o corredor central do campo, que, mais que mera linha, será o plano que unirá longitudinalmente as duas balizas. Algures no tempo, e por alguma razão, para nós um tanto ou quanto obscura, passou-se a considerar que a melhor forma de chegar ao golo seria materializar essa disposição cruciforme vezes sem conta, até que um jogador conseguisse, enfim, interceptar a trajectória do esférico, arremetendo-o na direcção das redes adversárias. Por alguma razão, ainda mais obscura, esse paradigma continua a alimentar as crenças de milhares de feéricos treinadores de bancada, que reclamam, vociferantes, de cada vez que uma bola se projecta para lá dos limites laterais da área, que a mesma seja de imediato cruzada. Por alguma razão, tão obscura que se julga que nem a própria luz dela consegue escapar, alguns ditos treinadores, com cursos certificados por altas instâncias e tudo, fazem coro com aqueles.
Permitir-nos-emos, com a insolência dos ingénuos, tecer algumas considerações…

Truísmo: a forma mais rápida de conseguir marcar um golo seria, partido do centro do campo, seguir em linha recta até à baliza, sem desvios. Infelizmente… existem adversários. Assim sendo, torna-se necessária uma sequência de movimentos que, desviando a bola dessa linha óptima, fazendo-a navegar por outras partes do campo, a possam trazer novamente até às proximidades desse eixo maior, até que, finalmente, ela chegue ao seu destino primordial. Ora, parece-nos claro e evidente que, quanto menos a bola se tiver de desviar desse corredor central, melhor será para quem ataca, pois mais circunjacente se encontrará do que, por sua vez, se soeu chamar de zona de finalização, isto é, daquela zona do campo em que, estando o jogador sem grande oposição, um remate não necessita de ser uma obra de génio, ou de beneficiar de um monumental falhanço do guarda-redes adversário, para que entre na baliza. Por isso advogamos que quanto mais uma equipa apostar no jogo interior, com qualidade, maiores as probabilidades terá de conseguir atingir o sucesso em cada jogada de ataque. Infelizmente… existem adversários. Assim sendo, poderá ser necessário alargar mais e mais o jogo atacante, quanto maior a qualidade e/ou grande densidade de canelas com que o adversário fechar os caminhos por esse corredor central. Não esquecendo, porém, o objectivo de, assim que surja a mais pequena hipótese, regressar ao centro, de preferência, com a bola pelo chão, controlada e orientada no sentido da baliza. Infelizmente… tudo isto dá trabalho, sobretudo a treinar. Achamos, por isso, que a primazia que o cruzamento conseguiu obter para si se deve, acima de tudo, ao carácter intrinsecamente preguiçoso do ser humano, que procura, sempre que possível, a solução que lhe faça despender a menor quantidade de recursos. Ir para a linha é, normalmente, rápido e relativamente fácil. Arranjar espaço para cruzar uma bola, também. Confiando nas probabilidades, veio a fé de que, algures entre dezenas de cruzamentos, alguma bola há-de ter um final feliz e beijar as redes.

O grande defeito deste estilo de jogo prender-se-á, na nossa perspectiva, com a anulação em larga escala do factor decisório. O futebol, reiteramos, é um jogo de inteligência, a vários níveis, sendo que, mais que a inteligência motora ou emocional, o que importa, o que verdadeiramente distingue os melhores dos bons, estes, dos medianos, e ainda estes, dos fracos, é a capacidade de analisar e decidir com maior ou menor qualidade perante contextos sempre diferentes a cada momento, diríamos que quase manipulando, a seu bel-prazer, a volubilidade do jogo. Ora, se uma equipa reduz a sua procura do golo a sucessivos cruzamentos, não há margem para grandes decisões, há sobretudo execução; logo, não há desafio ao adversário que defende, o qual apenas se tem de preparar convenientemente para responder a um conjunto de solicitações similares. Do mesmo modo, o que se passará dentro da área, salvas as raras excepções de jogadores geniais neste tipo específico de situação de ataque, será menos decisão por parte de quem procura dar uma sequência positiva ao lance, e mais mera disputa — quando se está a tentar, primeiramente, chegar a uma bola lançada pelo ar, isto é, que é pertença de ninguém, que espaço fica para decidir para onde se tentará rematar, caso, de facto, se chegue à bola?
O que não quer dizer que todos os cruzamentos, entendidos enquanto mera intersecção de linhas, como acima descrito, sejam inerentemente maus. Podem ser, de facto, a melhor decisão, quando haja, por exemplo, superioridade numérica ofensiva, ou quando o posicionamento defensivo seja tão deficitário que, para quem tenha capacidade técnica de o fazer, colocar a bola em determinado local seja mais um passe em forma de cruzamento que uma avé-maria para salvação das almas.

Posto isto, talvez se explique a fixação das massas pelo engodo do cruzamento. Lembremos essa frase tantas vezes repetida, perante um, mais um, cruzamento inócuo: «O cruzamento foi bom, só que alguém tem de aparecer». O que os aficionados desejam é, acima de tudo, ver disputas de bola. Não querem ver inteligência, não querem ver uma equipa a construir e criar de tal modo que cada golo pareça mais um passe para as redes que um verdadeiro esforço sobre-humano; não querem ver uma equipa a desafiar, a iludir, a manipular o adversário, querem, isso sim, que ela vença uma outra guerra, decidida ainda antes do apito inicial, contra as probabilidades.

“Ao cheiro desta canela o Reino se despovoa”

O ideal de vitória do comum adepto português é o resumo da sua índole em 134 caracteres: no último minuto, com um golo em fora-de-jogo e marcado com a mão, num contra-ataque depois de ter sido perdoada uma grande penalidade. De preferência, contra o maior rival.
É compreensível que todos os adeptos prefiram ganhar, pois é da vitória, e não da derrota, que se retira o prazer mais imediato. O estranho é que povo queira espectáculo, mas exigindo vitórias, surgindo elas como surgirem. Ou seja, perante a escolha entre a beleza de um jogo de futebol e a euforia da consagração dos vitoriosos, o adepto largará o inefável pelo vil metal da taça. Porém, finda a vindima, lamentar-se-á que, apesar do efémero regozijo, foi de proverbial franciscana pobreza, o entretenimento.
Factor atroz, este, pois, apesar de exógeno ao que se passa no campo, em muito condiciona o que são as vicissitudes do desporto, globalmente entendido. Por muito que os dirigentes dos clubes queiram dar ares de ditadores de pacotilha, também eles se deixam levar pelas ululações da turbamulta, descartando uns, incluindo daqueles que, por muitos desafios que tenham encontrado, conseguiram já conquistar o que deles se exige, em prol de outros que em melhores graças estão, junto dos apaniguados, por prometerem, ainda que sem base alguma de sustentação, novas, maiores e mais épicas conquistas.

Releva, tudo isto, da incapacidade de analisar racionalmente o que se passa no jogo, de dissociar a emoção das jogadas vertiginosas que se sucedem, em catadupa, de um lado para o outro, da realidade de bem jogar futebol. Isso é algo que envolverá mais ou menos controlo, mais ou menos domínio, mais ou menos pausa, mais ou menos aceleração; mas, e sobretudo, envolverá sempre uma ideia coerente e reiterada. Um jogo, um determinado jogo, pode ser imensamente divertido sem que nenhuma das equipas saiba o que está a fazer em campo. E não vem daí mal ao mundo. No entanto, e mais ainda neste rincão em que tão pobres jogadores as equipas têm ao seu dispor, muito dificilmente uma equipa dessas poderá ganhar um campeonato. Porque não basta acreditar. É preciso saber em quê...

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Leitura do evangelho segundo Artur Semedo

Parábola da fábrica de parafusos
Chegada a hora nona, assomou ao centro do terreno, onde foi rodeado por aqueles que o seguiam. Tomando para si os coletes, começou a distribuí-los, dizendo: “O Reino dos Picaretas é semelhante a uma fábrica de parafusos que labore num país em que se desconheçam os pregos, os rebites e demais formas de fixação de estruturas. Todos os que nela trabalhem saberão apenas fabricar parafusos – uns somente saberão produzir parafusos com cabeça para chaves de fendas, outros, com cabeça sextavada – e serão os melhores fazedores de parafusos do mundo e viverão felizes. Todos, menos um proletário angustiado com a persistência da espiral sulcada no quotidiano da sua vida fastidiosa. Ele será olhado de soslaio, será amesquinhado e vexado, até que saia do seu país, vergado pelo peso do opróbrio. Mas regressará, enfim, do exílio, trazendo consigo as patentes de novas e brilhantes soluções para os mesmos problemas a que até aí apenas os parafusos davam resposta, desde há tempos imemoriais. E conquistará os corações dos que habitam nesse país, e tornará obsoletos os parafusos e todos os que dele troçaram, e toda a fábrica entrará em decadência e haverá grande choro e ranger de dentes entre aqueles que outrora nela obravam. Quem tiver ouvidos que ouça.”

Parábola do cruzamento
Vendo o tumulto que as suas palavras geravam junto da turba, chamou-os novamente a si, e começou a distribuir abraços, dizendo: “O Reino dos Picaretas assemelha-se, ainda, a um homem que todos os dias conduza para o emprego sem cuidar do semáforo no cruzamento diante de sua casa, atravessando a intersecção a grande velocidade. Porque nunca nada lhe suceda, continuará a passar assim, diariamente, esteja verde ou vermelho, haja trânsito ou não, de dia e de noite, com chuva ou sol. Porque nada lhe suceda, os que o conhecem nada lhe dirão e até lhe tecerão loas à atitude temerária que lhe consente chegar sempre a tempo a todos os compromissos. Virá, então, o dia em que será instalada uma câmara de controlo de tráfego e logo se sucederão as multas amiudadas. Esse homem, porém, terá já o coração endurecido de anos e anos, e continuará a passar como até aí, sem cuidar do semáforo. Até ao dia fatídico em que um camião carregado de parafusos que sobrarem da insolvência da fábrica o esmagar, e haverá então grande choro e ranger de dentes entre aqueles que outrora o exaltavam. Quem tiver olhos que veja.”

Explicação das parábolas e apologia dos anões
Chegando ao fim das suas palavras, e vendo que estavam cansados e com fome, enviou-os para o banho, para que se pudessem preparar e regressar a casa antes do anoitecer. Todavia, três dos que o seguiam, os quais eram os seus mais humildes e dedicados discípulos, abeiraram-se dele e interrogaram: “Mister, que querem dizer as tuas palavras? Conta-nos, para que percebamos e façamos a tua vontade”. Olhando-os com ternura, baixou-se e começou a desenhar no chão. Tendo esperado em silêncio longos minutos, um deles suplicou, desolado: “Não desejas que saibamos mais que aquilo que sabemos? Porque nos fechas a porta para o conhecimento?” “Em verdade, em verdade vos digo – retorquiu – não há nada que vos possa ensinar que não me ensineis igualmente vós a mim, pois tendes os corações abertos e com eles dareis respostas que jamais os ouvidos humanos ouviram antes. Benditos sejam os pequenos e humildes que suam e sangram em nome do reino da bola!”
Vendo que eles não o compreendiam, continuou “Tal como na fábrica de parafusos se acreditava que bastaria continuar a fazer parafusos, sem se questionarem, cada um com uma profissão muito específica dentro da cadeia de produção, bem assim no Reino dos Picaretas se julga que cada um deve cumprir apenas com a sua função em campo, sem que tenha de perceber os consecutivos e irrepetíveis problemas que lhe são colocados defronte. Já o homem que passava sempre no semáforo sem dele cuidar é aquele picareta que decide e executa sempre da mesma forma. Porque teve sucesso quando lhe era fácil ter sucesso, continua a insistir, mesmo quando a realidade se torna mais agreste, e as condições pedem outra coisa diferente. Quando lhes tirarem a todos eles os contextos específicos em que são bem-sucedidos, quando lhes tirarem as suas capacidades de especialistas, esses súbditos do Reino serão apenas cinza e pó sem valor.
Por fim, o homem exilado é aquele que acredita no contrário, que quer que todos pensem e achem a cada momento outros recursos ainda, diversos dos seus. Por isso, esse será o homem que conseguirá mais vitórias. Em verdade, em verdade vos digo: se olhardes e verdes e pensardes verdadeiramente, estareis junto a ele, até ao fim dos tempos."

Louvor e simplificação de Artur Semedo, com figurinhas e tudo...

De entre todas as realizações que a mente humana possa engendrar, decerto as que mais causarão esse tipo de reacções bipolares de que falámos serão os raciocínios pejados de polissílabos e quaisquer formulações gráficas que possam fazer lembrar, mesmo que remotamente, esse conjunto aterrorizante de saberes, a matemática. Isto, acreditamos, dever-se-á a que ambas se encontram fundeadas na lógica, com a qual muito poucos querem conversa. Visto que não queremos que falte nada a quem não nos lê, e como das primeiras já temos vindo a disponibilizar exemplos a rodos, temos que:

fig. 1

Parece-nos óbvio que isto dispense demais explicações. Porém, e só pelo prazer da verborreia, deixaremos algumas pinceladas analíticas ao proposto.
Imaginemos, pois, que num jogo de futebol concorrem duas equipas, X e Y, a que aqui, e por conveniência, chamaremos X e Y. Visto que, mesmo ao mais baixo nível competitivo, se verá sempre pelo menos uma centelha de organização, um lampejo de uma ideia de como jogar, consideremos que, quando duas equipas jogam, o seu caminho se encontra já cruzado algures para lá do ponto zero. Antes ainda de perceber como joga cada uma das equipas, analisemos a qualidade individual ao dispor do treinador, isto é, saibamos, em média, quais os atributos físicos, técnicos, intelectuais, psicológicos dos jogadores: são rápidos, lentos, resistentes, ágeis, toscos, anomalias da motricidade humana?; são capazes de executar em conformidade os movimentos fundamentais com bola (recepção, passe, remate, condução…), e até que grau de oposição adversária conseguem manter essa qualidade?; são capazes de entender o que o jogo exige deles, decidir em conformidade, criar soluções novas, e com que velocidade de pensamento-acção?; são capazes de se manterem calmos sob pressão, inclusivamente advinda de factores exógenos ao jogo?... e por aí fora, adiante. A esse valor médio dos que constituem o plantel, chamaremos de i, de indivíduo, e atribuiremos a imagética de uma camisola, só porque sim. Como está bom de ver, Xi e Yi correspondem à qualidade individual média da equipa X e Y, respectivamente. Do mesmo modo, Xc e Yc correspondem à qualidade colectiva, ou c, do jogo de cada equipa. No seguimento do que já afirmamos, essa qualidade é tão maior quanto mais organizado, complexo e completo for o seu jogo em todos os momentos do jogo. Quer isto dizer que uma equipa que ataque sempre em transições ofensivas, forçando-as mesmo quando não deve, está num patamar inferior ao de uma outra que o faz quando tem de ser, e, no restante, promove um futebol de ataque em organização, com posse de bola, inteligência e critério; ou ainda que uma equipa que defende homem a homem é inferior a uma equipa capaz de dominar a defesa zonal com rigor. Porquê? Porque os primeiros exemplos demonstram menos capacidade de entender o jogo e, por conseguinte, controlá-lo.

Da relevância das omeletes
Seguindo o senso comum, o índice de i deveria ser, no fundo, o equivalente ao mínimo esperado do desempenho colectivo, ou seja, se as competências médias dos jogadores atingem determinado valor, presume-se que um treinador minimamente competente consiga levar a equipa a explanar um futebol consoante com a qualidade dos recursos disponíveis. Nem sempre é assim, no entanto. O valor efectivo do c nem sempre está acima ou, pelo menos, ao mesmo nível que o do i.
fig. 2
No caso de Xc <=> Xi, o resultado verificado é Xc > Xi. Em sentido contrário, Yc < Yi. Da amplitude de variação entre os dois parâmetros, conjugada com as posições relativas que os mesmos ocupam no eixo da equipa respectiva, podemos inferir das hipotéticas razões que justifiquem essa relação. Vejamos, primeiro, Xc > Xi: uma tal largueza poder-se-á dever meramente a um miraculoso acaso ou a uma falácia estatística (em que, na verdade, se se considerar apenas os jogadores habitualmente utilizados o valor de i será muito superior ao valor obtido para todo o plantel, casos a que se soeu chamar de plantel desequilibrado)? Ou não será mais provável que o treinador tenha conseguido incutir nos seus jogadores uma forma de jogar que exponencie as qualidades e mascare os defeitos de cada um deles, fazendo com que, no geral, o resultado se revele muito superior ao que seria esperado, analisando-se os particulares? Aliás, é sequer expectável que, com um plantel que denote uma qualidade individual média como esta, haja lugar para desequilíbrios assim tão gritantes dentro do mesmo? Já em Yc < Yi, a diferença aparece-nos muito mais esbatida, deixando-nos adivinhar que o maior problema talvez resida na incapacidade de operacionalizar, por parte do treinador, as suas ideias de jogo, ou que estas, não sendo tão más quanto se possa pensar, não sejam as mais adequadas aos recursos de que dispõe, os quais, se observarmos, não relevam de grande categoria.
Daqui induziremos ditatorialmente que, regra geral, quanto mais além o valor de c estiver em relação ao de i, mais provável será que essa distanciação se deva de facto ao trabalho do treinador e à qualidade do seu modelo de jogo, e menos a detalhes, aleatórios ou estatísticos; no sentido inverso, quanto mais aquém estiver c de i, menos capaz o treinador há-de ser. Existem decerto limites ao que o treinador possa acrescentar a uma equipa. A partir de certo nível de qualidade individual ao seu dispor, apenas um treinador de génio conseguirá oferecer ainda mais que aquilo que os seus recursos prometem à partida (fig. 2). Do mesmo modo, quando a qualidade individual é de facto medíocre, torna-se impossível aplicar um modelo de jogo tão complexo que exija dos jogadores capacidades que eles não possuem. Quer isto dizer que nem sempre o valor colectivo observável de uma equipa reproduz fielmente a idealização do seu treinador – resta, a este, continuar a insistir no trabalho diário para tentar aproximar a realidade do projectado por si. No sentido oposto, são bem menores os limites à destruição que um conjunto de más ideias e más práticas podem produzir numa panóplia de abundantes soluções.
Resumindo este segmento ao prosaico desenvolvimento de uma consumada máxima: não se consegue fazer omeletes sem ovos, mas nem sempre precisas dos melhores ovos para que ela fique saborosa, e, outrossim, não basta ter de facto os melhores ovos para que o resultado seja delicioso. O segredo está nos ingredientes extras e no bem mexer…

Da mirífica diagonal do sucesso
fig. 3
Usemos, agora, esta construção teórica para inferir das possibilidades de cada equipa, à partida, no que à vitória diz respeito. Visto que o fundamental do futebol é o processo colectivo, analisemos o quadrilátero definido pelos pontos [0,Xc,c,Yc]: um rectângulo em que uma das dimensões (neste caso, a largura: 0,Xc) se apresenta claramente inflacionada em relação à outra. Quão mais desproporcional for esta relação, seja em que sentido, maior vantagem retirará dela a equipa que se encontre mais além no seu próprio eixo. Pelo contrário, se o resultado for ou se assemelhar a um quadrado (fig. 3), podemos esperar um jogo colectivamente equilibrado. Não necessariamente de qualidade, mas a isso voltaremos. Quanto à individualidade, o rectângulo formado por [0,Xi,i,Yi] acaba por ser menos distendido no sentido da largura que o anterior, fruto, já da menor importância do individual em X, já das capacidades individuais médias estarem acima do modelo de jogo, em Y. Fosse o futebol um jogo em que predominasse o factor individual, e as probabilidades de vitória da equipa X diminuiriam na mesma razão em que aumentariam as de Y. Porém, o que realmente se verifica é que mesmo a menor das grandezas de X (Xi) se consegue sobrepor à maior das valias adversárias (Yc). Arriscaríamos até a dizer que bastariam essas individualidades de X, mesmo que sem se exibirem ao seu melhor nível colectivo, para se sobreporem ao colectivo de Y.
Surge-nos ligado a essa crença o ponto m, que resulta do cruzamento dos atributos menores de cada equipa. Este pode ser um ponto diferente quer de i quer de c, sendo então, Xc > Xi e Yc < Yi (como é o caso) ou Xc < Xi e Yc > Yi; ou ser equivalente a um deles, sendo então Xc > Xi e Yc > Yi  (fig. 3) ou Xc < Xi e Yc < Yi; ou, ainda que muito pouco provável, equivalente a ambos, caso em que, necessariamente, Xc = Xi e Yc = Yi. De entre todas estas possibilidades, surge-nos como altamente verosímil que, se m resultar diferente quer de i quer de c, a equipa em que c>i parte com vantagem, à partida, para o jogo, e, outrossim, que essa vantagem será tanto maior quanta a diferença entre Xc e Yc. Já a equipa que estiver na situação inversa verá as suas possibilidades serem absorbidas por aquilo a que chamamos de P, de pormenor puro. Ou seja, a equipa cujo individual se sobrepõe ao colectivo e que, sobretudo neste factor, está muito aquém do adversário, fica mais refém daquilo que os seus jogadores, por si só, sejam capazes de trazer ao jogo. Isto não quer dizer que o pormenor não exista sempre, diluído nas áreas acima descritas. Simplesmente, neste caso, ele assumir-se-á como que sendo uma substância autónoma, e, igualmente, imprevisível.
Resumindo, a nossa visão do que é a probabilidade de uma equipa sair vencedora de uma partida de futebol baseia-se em três alicerces fundamentais: o seu colectivo ser superior ao seu individual; o seu colectivo ser o mais evoluído possível dentro das limitações impostas pelo seu individual; o seu colectivo ser superior ao colectivo do adversário. Tudo isto releva do mesmo: o jogo colectivo é que prepondera, a longo prazo, nos resultados (fig. 4).
fig. 4

Parêntesis: da importância do segundo pilar.
(O seu colectivo ser o mais evoluído possível… que tem isso de fundamental? Tem a negação do ?, sinal que, por esta altura, esperamos nós, estaria já a fazer certa confusão na cabeça de quem não nos lê. Que representa este ? no grande plano da criação? Obviamente, o aleatório. ? é a soma de tudo o que, podendo acontecer num jogo, não depende nem dos valores de c nem de i. Tentar negar o ? é tentar negar o caos, é tentar controlar o jogo, é aplicar um modelo complexo e inteligente, é saber que se vai falhar algures, mas que no dia seguinte se irá tentar de novo, falhar novamente, falhar melhor.)

Da contribuição de cada um para melhorar o mundo
Partindo dessa abstracção mondriânica, passámos pela análise dos valores intestinos de cada equipa e, daí, avançámos para as relações de força entre os valores de ambas e consequências ao nível das probabilidades de vitória a curto e longo prazo. Juntemos agora as mãos e percebamos como a qualidade de uma partida resulta do somatório do que cada equipa lhe é capaz de oferecer, e não propriamente de tudo o que sucede durante os noventa minutos mais os extras. Quer-se com isto afirmar que tudo o que dependa de ?, que tudo o que não seja provocado com intuito, se não colectivamente, pelo menos individualmente, é não-qualidade, é um sub-produto inferior de circunstâncias específicas e irrepetíveis.
Temos, assim, aquilo a que podemos chamar a qualidade mínima esperada de um jogo, Qmin. Visto que esta se representa pelo quadrilátero definido pelos pontos 0, m, e pelos resultados das equações Xc <=> Xi e Yc <=> Yi, ela é tão maior quanto mais elevado for o valor destes últimos. Dito de outra forma, na fig. 1 o valor de Qmin é menor que o valor de Qmin na fig. 5 simplesmente porque neste segundo caso o quadrilátero [0,Xi,m=i,Yi] possui uma área maior que o quadrilátero [0,Xi,m,Yc] do primeiro. Será esta conclusão arbitrária? Não achamos. E não o achamos porque quanto mais uma equipa der ao jogo, mais a outra terá de responder na mesma moeda. Um desequilíbrio gritante de qualidade entre duas equipas tenderá a levar a mais forte a relaxar, a não aplicar em campo todo o seu potencial, pois tal não se verifica necessário para cumprir o desiderato vitorioso.
fig. 5
Além disso, e como se soeu dizer, ninguém gosta de ver bater em mortos, e se uma equipa não se encontra capaz de se opor à outra é simplesmente isso que sucede em campo.
Existem, depois, outros acrescentos possíveis à qualidade de um jogo, aqui assinalados como Q+. Estamos a falar, como se verifica facilmente, daquilo que é a diferença entre os valores de c e i em cada equipa, ou seja, se a equipa X do nosso caso primordial dará, à partida, e no mínimo, o seu valor de i ao jogo, pode ainda oferecer-lhe o que vai acima, até atingir a valia do c. Mais uma vez repetimos: entrará na equação o que se considera Q+ quanto maior a oposição que cada equipa oferecer à outra. Somando, assim, Qmin com os valores de Q+, o que nos surge não será, necessariamente, o valor da Q total ou Qmax. Dependerá da existência autónoma, como descrita acima, de um valor de P. No fundo, P equivale, no que à análise da qualidade geral de uma partida diz respeito, a mais um Q+. Simplesmente, torna-se menos previsível que tenha importância, é como que um elemento volátil, que tanto pode aparecer quanto desaparecer sem aviso.
Concluindo, o futebol, enquanto espectáculo, só tem a ganhar com a melhoria dos modelos de jogo em todas as equipas, o que nos leva a uma reflexão final…

Das aspirações meta-estéticas de um solitário
Dificilmente o desporto mais amado no mundo terá alcançado tais píncaros como os que foram atingidos pela equipa de Barcelona aos comandos de Guardiola. Não se tratava somente de uma equipa com uma filosofia de jogo superior; tratava-se de uma equipa que aplicou essa filosofia numa época em que o desporto se encontra em patamares elevadíssimos de velocidade; numa época em que não há tempo para se jogar bonito, a equipa jogou lindíssimo e mostrou, assim, o caminho. E, no entanto, tão poucos o compreenderam, tantos o vilipendiaram.
Muitas foram as críticas tecidas ao jogo culé, mas apenas vamos reflectir sobre uma: a de que os jogos em que jogava o Barcelona eram aborrecidos. E porque eram aborrecidos? Porque 80% do tempo era passado com os blaugrana a trocar a bola, sem objectividade… o que é, já, uma outra crítica derivada da primeira. Não vamos entrar por aí, vamos antes entrar num mundo de fábula…
barça vs. barça
Nesse mundo, as pessoas perceberiam que o que tornava os jogos desequilibrados, aparentemente repetitivos e monocórdicos, não era a filosofia barcelonesa, mas muito mais a(s) dos seus adversários! Perceberiam o que fazia o Barcelona, como controlava o jogo, manietava o adversário, construía condições para ter sucesso. E perceberiam o que faziam os adversários: esperavam por um momento qualquer, um pormenor, um acaso, sacrificavam-se no altar do aleatório.
Nesse mundo, as pessoas não imaginariam um jogo Barcelona vs. Barcelona como uma sequência bocejante de trocas de bola aparentemente sem intenção. Nesse mundo, as pessoas perceberiam que o Barcelona nunca deixaria que o Barcelona fizesse o que queria, o Barcelona lutaria com as mesmas armas e, por conseguinte, o jogo tornar-se-ia algo muito diferente do que alguma vez foi visto até agora. Pela oposição do Barcelona ao Barcelona, ambos os Barcelonas se tornariam, necessariamente, melhores equipas ainda!
Nesse mundo, o paradigma do bom futebol evoluiria, e o jogo tornar-se-ia ainda mais complexo, a um nível que não podemos verdadeiramente adivinhar. Nesse mundo, este gigantesco quadrado de Qmin seria a norma, e não a excepção.

Por ora, e enquanto se negar isto, continuaremos a sonhar, solitários.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Se não entendes o caminho, vai beber chá

Por paradoxal que pareça (embora, bem vistas as coisas, o paradoxo seja o traço identitário por excelência da espécie humana), quanto menos as pessoas são capazes de entender o que é dito por alguém, mais isso lhes causará admiração e, consequentemente, as tornará seguidistas (quase) fanáticas daquele que assim fala; ou, pelo outro lado, mais isso lhes causará repulsa, o que as tornará (quase) fanáticas detractoras de tudo o que esse alguém possa ter dito ou dizer futuramente. No fundo, ou assumem que o discurso é necessariamente igual à verdade, por se lhes afigurar inatingível (se é assim tão complicado, há-de ser verdade); ou recusam-lhe qualquer valor, por se lhes afigurar inatingível (se eu não compreendo, tem de ser uma treta). Sendo a causa a mesma, os efeitos são os opostos, sem meio-termo. Porquê este maniqueísmo insosso? Talvez porque conseguir encontrar uma posição entre o branco e o preto obriga a que trabalhe a massa... cinzenta.

O homem superior ao ouvir sobre o Caminho
Esforça-se para poder realizá-lo
O homem mediano ao ouvir sobre o Caminho
Às vezes o resguarda, às vezes o perde
O homem inferior ao ouvir sobre o Caminho
Trata-o às gargalhadas
Se não fosse tratado às gargalhadas
Não seria suficiente para ser o Caminho
Por isso, as seguintes palavras sugerem:
A iluminação do Caminho é como se fosse a obscuridade
O avanço do Caminho é como se fosse o retrocesso
As planícies do Caminho são como se fossem iguais
A Virtude superior é como se fosse o comum
A grande brancura é como se fosse o sujo
A Virtude ampla é como se fosse insuficiente
Construir a Virtude é como se fosse roubar
A consistência verdadeira é como se fosse o instável
O grande quadrado não tem ângulos
O grande recipiente conclui-se tarde
O grande som carece de ruído
A grande imagem não tem forma
O Caminho é invisível e não tem nome
Assim, apenas o Caminho é bom em auxiliar e concluir

– Capítulo XLI do Tao Te Ching

domingo, 5 de outubro de 2014

“Eu sou o Alfa e o Ómega, o princípio e o fim”


Esta linha representa o caminho. O inelutável caminho que todas as equipas têm de percorrer. Algumas quedar-se-ão escassos milímetros após o primeiro passo, por não terem quem as guie mais além. Outras iludir-se-ão, julgando, talvez, que já pouco falta para chegar ao fim. Mas ele não existe. Existe apenas o alfa, ao passo que o putativo ómega escapará sempre, numa fuga perpétua em direcção ao infinito. Esta linha é o caminho do caos.

Repetimos, para que as pessoas não se esqueçam  e para que entendam que a possibilidade de tudo controlar é limitada pelo real, em contraponto ao imaginário fantástico que parece povoar as correntes de opinião nas bancadas – que o jogo é caótico. Nenhum treinador, por mais inteligente e competente a transmitir o seu pensamento que seja, por melhores jogadores de que disponha, conseguirá fazer com que uma equipa contradiga plenamente esse caos, se sobreponha a esse caos. Isto porque, mesmo dentro de um modelo de jogo colectivo altamente complexo e organizado, as decisões de 22 indivíduos, ainda que condicionadas por esse modelo treinado diariamente, influenciarão a progressão, momento a momento, de uma partida e, por fim, o seu desfecho; e, sobretudo, porque todos eles errarão algures. Não obstante, um treinador que tome para si o bordão e guie os seus jogadores pelos caminhos da transumância futebolística poderá chegar aos mais férteis pastos, aonde os que se limitam a assobiar, sentados numa rocha fria, nunca porão pé. Não falamos, estritamente, de ganhar um jogo ou um troféu; falamos, isso sim, de aumentar exponencialmente a plausibilidade da vitória em cada jogo, em cada troféu disputado. Falamos de incutir um ideal que faça frente à aleatoriedade de um jogo sem ordem. Falamos de treinar uma equipa para querer ser a dona da bola.
Querer ser o dono da bola é recusar permanecer no início do caminho do caos, onde existe apenas o princípio reactivo, em que as decisões que uma equipa toma são sempre derivadas do que lhe é externo – as decisões da outra equipa – e onde os factores exógenos a ambas as equipas mais influem (estado do terreno, condições climatéricas, arbitragens…). Querer ser o dono da bola é almejar a atingir uma outra espécie de caos, que qualificaria de princípio proactivo, em que a equipa propicia a que as coisas sucedam de determinada forma, consentânea com o seu modo de entender o jogo. Ora, a melhor, porque mais completa, forma de agir premeditadamente sobre o decurso de uma partida é controlar, é ter na sua posse durante a maior parte do tempo, aquilo que mais influencia a disposição dos jogadores no terreno: obviamente, a bola.

Antes de mais, e porque, como diz o adágio, a outra equipa também joga, é preciso saber roubá-la o quanto antes, mas com a inteligência suficiente para não ser traído pela própria demanda. Ou seja, quem quer realmente controlar um jogo tem de ser tão antecipatório a defender quanto o será a atacar, pois a opção pela expectativa permanente apenas aumentará as possibilidades de o adversário conseguir marcar, ele próprio, um golo – visto que o tempo provoca, pelo seu desgaste na psique e no físico, uma natural quebra de concentração e, consequentemente, eficiência. Uma tal equipa defende com o objectivo de constranger o adversário a errar – seja um erro de decisão, seja um erro técnico – ou de lhe negar qualquer solução que lhe permita manter com segurança a posse bola – obrigando, por exemplo, a que o adversário tenha de bater uma bola sem destinatário, que leve a uma disputa para a sua (re)conquista. Esses comportamentos servem, por princípio assumido, para tentar levar à recuperação da posse de bola o mais rápido possível. E, nesta condição sublinhada com todo o propósito, reside um outro pilar estruturante de uma defesa ideal: a paciência é a maior virtude, quando não se deseja ser vítima da precipitação dos próprios actos, do sofrimento causado pelo desejo em demasia – que a equipa queira recuperar a bola é um objectivo do bom treinador; que ela consiga ser capaz de perceber os momentos em que tal desiderato não é concretizável, e, por isso, se abstenha de o tentar provocar, cedendo, aí sim, a uma posição momentaneamente mais expectante, em vez de pretender vergar o inexequível, é a outra metade, por ventura a mais complicada, do seu trabalho.
Necessariamente, tudo isto se aplica no sentido inverso, ou seja, quando a equipa tem, finalmente, a bola em seu poder. Também aqui, o que torna o jogo potencialmente melhor é a intencionalidade de cada acção. E digo intencionalidade, em vez de objectividade, porque este termo, por ser um pouco dúbio, anda demasiado confundido nas mentes dos adeptos (lá iremos, a seu tempo). Agir com intenção é, como é óbvio, não fazer nada apenas porque sim, sem uma certeza de ser uma solução válida; é pensar e executar com inteligência aquilo que permitirá à equipa chegar ao objectivo do jogo – marcar golos. Mas é, além disso, não apressar as tentativas de chegada à baliza contrária, é esperar pelo momento mais adequado para desferir tal ataque directo, concretizando, nos entretantos, movimentos e decisões subordinados a esse intuito implícito. Manter a posse de bola com inteligência – incluindo trabalho com e sem bola, como seja multiplicar opções de passe ao portador, em dinâmica constante, para que este seja capaz de aproveitar espaços clareados – permite compelir a defesa a errar, levando-a para onde se quer que ela vá, desorganizando-a, para depois a atacar pela zona mais enfraquecida. Tal como sucede com os momentos defensivos, é aqui que o treinador mais dificilmente levará a bom porto os seus desideratos – conseguir convencer os seus jogadores a não procurarem sempre o golo da forma mais abreviada possível, mas sim quando a própria equipa se encontra preparada para o procurar com qualidade e alto grau de probabilidade de êxito.
Subjazem, nestas afirmações, dois ideais que sintetizam a força motriz que impele a marcha ao longo do caminho: ter a posse de bola e realizar aquilo que é mais indicado a cada momento. O que urge que se compreenda, de uma vez por todas, é que o ideal da posse de bola não se sobrepõe, não combate, não nega o ideal da tomada de decisão. Quer-se com isto dizer que, se a melhor decisão a tomar for a de contra-atacar rapidamente, aproveitando um momento de absoluta desorganização adversária que permita clara vantagem para a equipa, não se irá esbanjar tal oportunidade por se ser apologista da posse de bola. O verdadeiro busílis da questão, que tão pouco é percebido pela maioria, é que, na maior parte das vezes, a vantagem está em gerir e utilizar inteligentemente a posse de bola, mantendo-a activa sem a precipitar no sentido da baliza contrária, mas somente no momento adequado. Ou seja, se uma equipa deve fazer aquilo que o contexto momentâneo lhe exige, melhor ainda será ter uma ideia de jogo que lhe permita condicionar esses contextos, tornando-os benfazejos à sua complexa organização colectiva, sempre que eles não se apresentarem evidentemente favoráveis.

Posto isto, insinuaremos que, no grande panorama dos estádios evolutivos das equipas de futebol, as que se encontram mais adiantadas no caminho infindo em busca da mirífica perfeição, as mais organizadas, são aquelas que denotam processos colectivos suficientemente fortes para conseguirem anular na mor parte do tempo a significância do pormenor – em que as individualidades conseguem ser mais determinantes – e do aleatório – a sorte ou azar de um tufo de relva levantado, e todas as outras condicionantes de uma partida, exógenas a ambas as equipas e que a ambas pode influenciar. Dentro destas, sem dúvida que indicaremos como dianteiras as que pugnam em campo com um modelo de jogo sustentado na posse de bola inteligente. Porquê? Porque são essas que deixam menos espaço para o adversário agir sobre o desenrolar da partida, impondo elas a sua filosofia, manietando a prossecução do tempo. Sobretudo, porque são essas que conseguem impor o seu modus operandi a qualquer outro adversário, ou seja, uma tal equipa joga no seu estilo contra qualquer outro, não se adapta, porque não precisa de se adaptar para ganhar vantagem.
Mas acrescentaremos, igualmente, aquilo que o ideal da posse de bola não é – não é uma panaceia infalível contra todos os males que fará da vitória uma certeza à partida. Ser a melhor forma de garantir que uma equipa se encontra preparada para lutar competentemente por um resultado ou prova, controlando, dominando partida após partida, não garante que se saia por cima de todas as pelejas. Porque até estas equipas têm limites: desde logo, o limite imposto pela capacidade que os seus elementos possam ter, ou não, para executar o modelo, erguendo-o aos graus mais elevados de complexidade – se mesmo os melhores jogadores do mundo falham, por vezes, decisões ou gestos técnicos, pondo em causa o desenrolar de uma partida, uma equipa muito bem trabalhada pelo treinador, mas com jogadores medíocres, estará limitada no seu desenvolvimento pela maior frequência de erros individuais; ligando-se a esta questão, assoma a possibilidade de uma tal equipa encontrar uma outra, menos organizada, apologista até de um estilo de jogo mais directo, menos complexo, mas que disponha de jogadores muito mais capazes – sendo assim, é sempre possível que a qualidade individual se sobreponha, numa partida específica, ao valor colectivo, embora, na longa duração, a balança tenda, decerto, para este último; depois, há o risco de uma tal filosofia redundar num efeito paradoxal – a crença absoluta na posse de bola enquanto efeito gerador de supremacia pode originar, por seu turno, uma diminuição da prevalência da decisão mais correcta, a qual, como dissemos, não se submete àquela forma de jogar em todos os contextos momentâneos, ou seja, invertendo a hierarquia, pode-se reduzir, paulatinamente, as probabilidades de sucesso, ainda que recorrendo a um modelo intrinsecamente capaz de as potenciar.

Por fim, e como triste epílogo, resta o maior limite que esta forma de jogar enfrenta: a impaciência alheia. Embora seja, até ao momento actual, a realização mais elevada do futebol, é também a mais trabalhosa, é também aquela que mais tempo dura a consolidar. Por isso, e por ninguém querer esperar para ver resultados, não se aposta, em larga escala, na implementação de tal modelo, mesmo que com tonalidades ligeiramente diferentes, para agradar a uns quantos gregos ou troianos. E, por consequência, não podemos, para já, antever com claridade o que virá a seguir. O que virá a seguir apenas surgirá quando, ou melhor, se se generalizar esta forma de ver o jogo. Apenas do confronto directo constante entre equipas de tal calibre poderá advir a próxima evolução do jogo mais belo. Até lá, até surgir essa revolução de paradigma, estaremos condenados a meros lampejos, e a ver sempre o horizonte do caminho como um trémulo ocaso.

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

O cerco dos coiotes

The Indian tribes around the sleepy Arizona city of Flagstaff have an interesting take on the human struggle for peace and harmony. According to their traditions, the difficulties and confusions of life have their roots in the arrangement of the stars in the heavens—or rather the lack of it. Those jewels in the sky were meant to help us find a tranquil, contented existence, but when First Woman was using the stars to write the moral laws into the blackness, Coyote ran out of patience and flung them out of her bowl, spattering them across the skies. From Coyote’s primal impatience came the mess of constellations in the heavens and the chaos of human existence." 
Michael Brooks, “13 Things That Don't Make Sense: the most intriguing scientific mysteries of our time.”
Ninguém é perfeito. A pressa é inimiga da perfeição. Todos nós somos, a um nível mais ou menos acentuado, apressados, impacientes como o Coiote, e é isso, em parte, o que nos impede de ascender a essa perfeição tão almejada pelo ser humano. Os treinadores, enquanto seres humanos, não fogem à regra, não têm como eludir a massa de que são primordialmente feitos, e, portanto, falham. No entanto, e como não se dá o caso de haver duas pessoas iguais, há uma paleta quase infinita onde coexistem os que reflectem fielmente a imagem do animal efabulado com os que se tentam assemelhar à Primeira Mulher, ou seja, há os que deixam dissipar o futebol na sua aleatoriedade caótica, e há os que lhe tentam dar ordem, regra, organização, há confusão e há criação e tudo o mais de permeio. As bancadas, porém, estão repletas de carnívoros cruéis, pelo que a vida é complicada para quem não cede à pressa… de vencer.
Considerámos anteriormente que a complexidade de um jogo de futebol não será, jamais, domada na sua totalidade. E, ao contrário do que se costuma dizer acerca de tanta coisa, custa mesmo tentar! É preciso tempo, muito tempo, mais tempo que aquele que, normalmente, os adeptos estão dispostos a conceder. E, não obstante, só assim vale a pena falhar.

Voltemos à cavadela anterior, à bola que parou momentaneamente a reflectir. De onde veio? Para onde vai? E, sobretudo, porquê? Que ela veio propulsionada pelos pés, cabeça, ou qualquer outra parte admitida para lhe tocar, de um dos jogadores em campo, é coisa certa, pois sendo esta um objecto inanimado não se move sozinha e é assim que se joga futebol. Posto o óbvio ululante, ela pode estar a caminho de uma baliza, ou de um outro jogador, que é como quem diz, pode estar numa trajectória que a conduza ao objectivo principal – marcar golo – ou apenas em mais uma trajectória intercalar, de entre as milhentas que existem numa partida. Se quisermos ser mais prosaicos, temos, assim, que a bola foi rematada ou passada. Resta saber como explicar que esteja numa ou outra situação.
Da moeda lançada ao ar pode calhar sair cara ou coroa. O resultado desta acção é passível de ser, teoricamente, calculado antes que seja tornado efectivo ou, pelo menos, verificável empiricamente. Nada disso serve para deslindar estoutro caso, porque a condição em que se encontra a bola não deriva de nenhuma lei científica, mas antes e apenas da decisão tomada por quem lhe tocou. A serem comparáveis os casos, teríamos de perceber por que razão se lançou a moeda com determinado dedo, com determinada força, em determinada direcção mais ou menos vertical. E, todavia, ou se lançou e há um resultado, ou não se lançou, e nada há que mostrar. Por isso que é impossível prever com exactidão o que vai suceder num jogo de futebol a partir do momento em que soa o primeiro apito do árbitro: a partir desse instante mandam as decisões tomadas primariamente a um nível individual, as quais são muito mais complexas que as relacionadas com o exemplo da moeda: o equivalente a não lançar, isto é, não agir de modo nenhum não é opção; quanto muito, o jogador pode temporizar um pouco, antes de agir, ou pode decidir nunca ser jogador de futebol. Há, pois, que operar uma das acções possíveis com bola, rematar ou passar, ou ainda driblar, ou ainda conduzir. Há, mais que isso, que rematar agora, um milésimo de segundo depois, para cima, para baixo, para o meio, em força, com jeito e efeito, em balão, rasteirinho… ou passar para o fulano, ou para o sicrano, para diante, para trás, para o lado, um passe curto ou para a profundidade… ou conduzir veloz para a esquerda, direita, em frente, recuar… ou driblar o único defesa que lhe tapa o caminho directo para a baliza… ou [continuar a inserir aqui todas as decisões possíveis].
Há, pois, que operar uma das acções sem bola, ao ver o colega com o domínio da mesma.
Há, pois, que operar uma das acções sem bola, ao ver o adversário com a mesma.
Há, pois, que decidir como receber a bola, se esta lhe for passada. Há, pois, que decidir, decidir, decidir…
Há, pois, que perceber que cada uma das disposições momentâneas dos jogadores em campo, embora esteja necessariamente incluída no rol das milhentas combinações possíveis, deriva fundamentalmente, não de relações causa-efeito explicáveis pelas ciências matemáticas do universo, mas sim das decisões que cada jogador toma, após analisar, em instantes extremamente fugazes, o contexto: onde está a bola, quem a tem, onde estão os meus colegas, onde está a baliza que pretendo atacar ou defender… e que nenhum jogador toma tal decisão sabendo, de antemão e com precisão absoluta, qual a decisão que os outros vão tomar. Estamos, portanto, a falar de um fluxo contínuo de informação sensorial a provocar reacções em cadeia nas insondáveis sinapses de 22 elementos independentes. Não há com certeza tecnologia humana que possa sequer simular este acúmulo de processos, quanto mais um ser capaz de o controlar totalmente.

O que faz, então, o coiote inquieto? Como não dispõe da perseverança necessária para tentar sequer apreender a fundo o que diante de si se desenrola, deixa os jogadores à solta, entregues ao seu arbítrio indomado, esperando que, por resultado de alguma maquinação instantânea e não premeditada, algo de positivo suceda para o seu lado. Atira as gemas para o relvado e espera que, por algum passe de mágica, elas se alinhem numa constelação bem-sucedida.
E que faz aquele que é mais paciente? Trabalha diariamente para tentar oferecer aos jogadores da sua equipa alicerces colectivos sobre os quais eles possam sustentar essas decisões individuais. Não os constrange a fazer exactamente o mesmo a todo o momento, ensina-os a olhar e entender o que se passa em redor, e dá-lhes depois a liberdade de decidir como considerarem melhor, dentro dos limites filosóficos de um ideal de jogo. Estimula-lhes o pensamento complexo, ensina-os a voar…
É essa a distinção entre ter o cargo de treinador e assumir a missão de treinador. Ter o cargo é ostentar uma braçadeira e aparecer na ficha dos jogos, sem interferir em nada com a realidade de cada partida, de cada época, com a memória um clube ou selecção, menos ainda com a história do mais belo jogo. Assumir a missão é ser o oposto e ser o alvo da sede ferina dos coiotes que pululam nas bancadas, ignaros da beleza moldada em tons de complexidade que se lhes poderia ser oferecida, se não desejassem, ao invés, uma qualquer outra coisa.