De entre todas as realizações que a mente humana possa engendrar, decerto
as que mais causarão esse tipo de reacções bipolares de que falámos serão os raciocínios
pejados de polissílabos e quaisquer formulações gráficas que possam fazer
lembrar, mesmo que remotamente, esse conjunto aterrorizante de saberes, a
matemática. Isto, acreditamos, dever-se-á a que ambas se encontram fundeadas na
lógica, com a qual muito poucos querem conversa. Visto que não queremos que
falte nada a quem não nos lê, e como das primeiras já temos vindo a disponibilizar
exemplos a rodos, temos que:
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fig. 1 |
Parece-nos óbvio que isto dispense demais explicações. Porém, e só
pelo prazer da verborreia, deixaremos algumas pinceladas analíticas ao
proposto.
Imaginemos, pois, que num jogo de futebol concorrem duas equipas, X e
Y, a que aqui, e por conveniência, chamaremos X e Y. Visto que, mesmo
ao mais baixo nível competitivo, se verá sempre pelo menos uma centelha de
organização, um lampejo de uma ideia de como jogar, consideremos que, quando
duas equipas jogam, o seu caminho se encontra já cruzado algures para lá do
ponto zero. Antes ainda de perceber como joga cada uma das equipas, analisemos
a qualidade individual ao dispor do treinador, isto é, saibamos, em média,
quais os atributos físicos, técnicos, intelectuais, psicológicos dos jogadores:
são rápidos, lentos, resistentes, ágeis, toscos, anomalias da motricidade
humana?; são capazes de executar em conformidade os movimentos fundamentais com
bola (recepção, passe, remate, condução…), e até que grau de oposição
adversária conseguem manter essa qualidade?; são capazes de entender o que o
jogo exige deles, decidir em conformidade, criar soluções novas, e com que
velocidade de pensamento-acção?; são capazes de se manterem calmos sob pressão,
inclusivamente advinda de factores exógenos ao jogo?... e por aí fora, adiante.
A esse valor médio dos que constituem o plantel, chamaremos de i, de indivíduo, e atribuiremos a imagética de uma camisola, só porque
sim. Como está bom de ver, Xi e Yi correspondem à qualidade individual
média da equipa X e Y, respectivamente. Do mesmo modo, Xc e Yc
correspondem à qualidade colectiva,
ou c, do jogo de cada equipa. No
seguimento do que já afirmamos, essa qualidade é tão maior quanto mais
organizado, complexo e completo for o seu jogo em todos os momentos do jogo.
Quer isto dizer que uma equipa que ataque sempre em transições ofensivas,
forçando-as mesmo quando não deve, está num patamar inferior ao de uma outra
que o faz quando tem de ser, e, no restante, promove um futebol de ataque em
organização, com posse de bola, inteligência e critério; ou ainda que uma
equipa que defende homem a homem é inferior a uma equipa capaz de dominar a
defesa zonal com rigor. Porquê? Porque os primeiros exemplos demonstram menos capacidade
de entender o jogo e, por conseguinte, controlá-lo.
Da relevância das omeletes
Seguindo o senso comum, o índice de i deveria ser, no fundo, o equivalente ao mínimo esperado do
desempenho colectivo, ou seja, se as competências médias dos jogadores atingem
determinado valor, presume-se que um treinador minimamente competente consiga levar
a equipa a explanar um futebol consoante com a qualidade dos recursos
disponíveis. Nem sempre é assim, no entanto. O valor efectivo do c nem sempre está acima ou, pelo menos,
ao mesmo nível que o do i.
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fig. 2 |
No caso de Xc <=> Xi,
o resultado verificado é Xc > Xi. Em
sentido contrário, Yc < Yi. Da amplitude
de variação entre os dois parâmetros, conjugada com as posições relativas que
os mesmos ocupam no eixo da equipa respectiva, podemos inferir das hipotéticas
razões que justifiquem essa relação. Vejamos, primeiro, Xc > Xi: uma tal largueza poder-se-á dever meramente a um
miraculoso acaso ou a uma falácia estatística (em que, na verdade, se se
considerar apenas os jogadores habitualmente utilizados o valor de i será muito superior ao valor obtido
para todo o plantel, casos a que se soeu chamar de plantel desequilibrado)? Ou não será mais provável que o treinador
tenha conseguido incutir nos seus jogadores uma forma de jogar que exponencie
as qualidades e mascare os defeitos de cada um deles, fazendo com que, no
geral, o resultado se revele muito superior ao que seria esperado,
analisando-se os particulares? Aliás, é sequer expectável que, com um plantel
que denote uma qualidade individual média como esta, haja lugar para
desequilíbrios assim tão gritantes dentro do mesmo? Já em Yc < Yi, a diferença aparece-nos muito mais esbatida,
deixando-nos adivinhar que o maior problema talvez resida na incapacidade de
operacionalizar, por parte do treinador, as suas ideias de jogo, ou que estas,
não sendo tão más quanto se possa pensar, não sejam as mais adequadas aos
recursos de que dispõe, os quais, se observarmos, não relevam de grande
categoria.
Daqui induziremos ditatorialmente que, regra geral, quanto mais além o
valor de c estiver em relação ao de i, mais provável será que essa
distanciação se deva de facto ao trabalho do treinador e à qualidade do seu
modelo de jogo, e menos a detalhes, aleatórios ou estatísticos; no sentido inverso,
quanto mais aquém estiver c de i, menos capaz o treinador há-de ser. Existem
decerto limites ao que o treinador possa acrescentar a uma equipa. A partir de
certo nível de qualidade individual ao seu dispor, apenas um treinador de génio
conseguirá oferecer ainda mais que aquilo que os seus recursos prometem à
partida (fig. 2). Do mesmo modo,
quando a qualidade individual é de facto medíocre, torna-se impossível aplicar
um modelo de jogo tão complexo que exija dos jogadores capacidades que eles não
possuem. Quer isto dizer que nem sempre o valor colectivo observável de uma
equipa reproduz fielmente a idealização do seu treinador – resta, a este,
continuar a insistir no trabalho diário para tentar aproximar a realidade do
projectado por si. No sentido oposto, são bem menores os limites à destruição
que um conjunto de más ideias e más práticas podem produzir numa panóplia de
abundantes soluções.
Resumindo este segmento ao prosaico desenvolvimento de uma consumada
máxima: não se consegue fazer omeletes sem ovos, mas nem sempre precisas dos
melhores ovos para que ela fique saborosa, e, outrossim, não basta ter de facto
os melhores ovos para que o resultado seja delicioso. O segredo está nos
ingredientes extras e no bem mexer…
Da mirífica diagonal do sucesso
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fig. 3 |
Usemos, agora, esta construção teórica para inferir das possibilidades
de cada equipa, à partida, no que à vitória diz respeito. Visto que o
fundamental do futebol é o processo colectivo, analisemos o quadrilátero
definido pelos pontos [0,Xc,c,Yc]:
um rectângulo em que uma das dimensões (neste caso, a largura: 0,Xc) se apresenta claramente
inflacionada em relação à outra. Quão mais desproporcional for esta relação,
seja em que sentido, maior vantagem retirará dela a equipa que se encontre mais
além no seu próprio eixo. Pelo contrário, se o resultado for ou se assemelhar a
um quadrado (fig. 3), podemos esperar
um jogo colectivamente equilibrado. Não necessariamente de qualidade, mas a
isso voltaremos. Quanto à individualidade, o rectângulo formado por [0,Xi,i,Yi] acaba por ser menos
distendido no sentido da largura que o anterior, fruto, já da menor importância
do individual em X, já das
capacidades individuais médias estarem acima do modelo de jogo, em Y. Fosse o futebol um jogo em que
predominasse o factor individual, e as probabilidades de vitória da equipa X diminuiriam na mesma razão em que
aumentariam as de Y. Porém, o que
realmente se verifica é que mesmo a menor das grandezas de X (Xi) se consegue sobrepor à maior das valias adversárias (Yc). Arriscaríamos até a dizer que bastariam
essas individualidades de X, mesmo
que sem se exibirem ao seu melhor nível colectivo, para se sobreporem ao colectivo
de Y.
Surge-nos ligado a essa crença o ponto m, que resulta do cruzamento dos atributos menores de cada equipa.
Este pode ser um ponto diferente quer de i
quer de c, sendo então, Xc > Xi e Yc < Yi (como é o caso) ou Xc
< Xi e Yc > Yi; ou ser
equivalente a um deles, sendo então Xc >
Xi e Yc > Yi (fig. 3)
ou Xc < Xi e Yc < Yi; ou, ainda que muito pouco
provável, equivalente a ambos, caso em que, necessariamente, Xc = Xi e Yc = Yi. De entre todas estas possibilidades, surge-nos como
altamente verosímil que, se m
resultar diferente quer de i quer de c, a equipa em que c>i parte com vantagem, à partida, para o jogo, e, outrossim,
que essa vantagem será tanto maior quanta a diferença entre Xc e Yc.
Já a equipa que estiver na situação inversa verá as suas possibilidades serem
absorbidas por aquilo a que chamamos de P,
de pormenor puro. Ou seja, a equipa
cujo individual se sobrepõe ao colectivo e que, sobretudo neste factor, está
muito aquém do adversário, fica mais refém daquilo que os seus jogadores, por
si só, sejam capazes de trazer ao jogo. Isto não quer dizer que o pormenor não
exista sempre, diluído nas áreas acima descritas. Simplesmente, neste caso, ele
assumir-se-á como que sendo uma substância autónoma, e, igualmente,
imprevisível.
Resumindo, a nossa visão do que é a probabilidade de uma equipa sair
vencedora de uma partida de futebol baseia-se em três alicerces fundamentais: o
seu colectivo ser superior ao seu individual; o seu colectivo ser o mais
evoluído possível dentro das limitações impostas pelo seu individual; o seu
colectivo ser superior ao colectivo do adversário. Tudo isto releva do mesmo: o
jogo colectivo é que prepondera, a longo prazo, nos resultados (fig. 4).
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fig. 4 |
Parêntesis: da importância do segundo pilar.
(O seu colectivo ser o mais
evoluído possível… que tem isso de fundamental? Tem a negação do ?, sinal que, por esta altura, esperamos
nós, estaria já a fazer certa confusão na cabeça de quem não nos lê. Que
representa este ? no grande plano da
criação? Obviamente, o aleatório. ? é
a soma de tudo o que, podendo acontecer num jogo, não depende nem dos valores
de c nem de i. Tentar negar o ? é
tentar negar o caos, é tentar controlar o jogo, é aplicar um modelo complexo e
inteligente, é saber que se vai falhar algures, mas que no dia seguinte se irá
tentar de novo, falhar novamente, falhar melhor.)
Da contribuição de cada um para melhorar o mundo
Partindo dessa abstracção mondriânica, passámos pela análise dos
valores intestinos de cada equipa e, daí, avançámos para as relações de força
entre os valores de ambas e consequências ao nível das probabilidades de
vitória a curto e longo prazo. Juntemos agora as mãos e percebamos como a
qualidade de uma partida resulta do somatório do que cada equipa lhe é capaz de
oferecer, e não propriamente de tudo o que sucede durante os noventa minutos
mais os extras. Quer-se com isto afirmar que tudo o que dependa de ?, que tudo o que não seja provocado com
intuito, se não colectivamente, pelo menos individualmente, é não-qualidade, é
um sub-produto inferior de circunstâncias específicas e irrepetíveis.
Temos, assim, aquilo a que podemos chamar a qualidade mínima esperada de um jogo, Qmin. Visto que esta se representa pelo quadrilátero definido pelos
pontos 0, m, e pelos resultados das equações Xc <=> Xi e Yc <=>
Yi, ela é tão maior quanto mais elevado for o valor destes últimos. Dito de
outra forma, na fig. 1 o valor de Qmin é menor que o valor de Qmin na fig. 5 simplesmente porque neste segundo caso o quadrilátero [0,Xi,m=i,Yi] possui uma área maior que
o quadrilátero [0,Xi,m,Yc] do
primeiro. Será esta conclusão arbitrária? Não achamos. E não o achamos porque
quanto mais uma equipa der ao jogo, mais a outra terá de responder na mesma
moeda. Um desequilíbrio gritante de qualidade entre duas equipas tenderá a
levar a mais forte a relaxar, a não aplicar em campo todo o seu potencial, pois
tal não se verifica necessário para cumprir o desiderato vitorioso.
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fig. 5 |
Além disso,
e como se soeu dizer, ninguém gosta de ver bater em mortos, e se uma equipa não
se encontra capaz de se opor à outra é simplesmente isso que sucede em campo.
Existem, depois, outros acrescentos possíveis à qualidade de um jogo,
aqui assinalados como Q+. Estamos a
falar, como se verifica facilmente, daquilo que é a diferença entre os valores
de c e i em cada equipa, ou seja, se a equipa X do nosso caso primordial dará, à partida, e no mínimo, o seu
valor de i ao jogo, pode ainda
oferecer-lhe o que vai acima, até atingir a valia do c. Mais uma vez repetimos: entrará na equação o que se considera Q+ quanto maior a oposição que cada
equipa oferecer à outra. Somando, assim, Qmin
com os valores de Q+, o que nos surge
não será, necessariamente, o valor da Q
total ou Qmax. Dependerá da existência
autónoma, como descrita acima, de um valor de P. No fundo, P equivale,
no que à análise da qualidade geral de uma partida diz respeito, a mais um Q+. Simplesmente, torna-se menos
previsível que tenha importância, é como que um elemento volátil, que tanto
pode aparecer quanto desaparecer sem aviso.
Concluindo, o futebol, enquanto espectáculo, só tem a ganhar com a
melhoria dos modelos de jogo em todas as equipas, o que nos leva a uma reflexão
final…
Das aspirações meta-estéticas de um solitário
Dificilmente o desporto mais amado no mundo terá alcançado tais
píncaros como os que foram atingidos pela equipa de Barcelona aos comandos de
Guardiola. Não se tratava somente de uma equipa com uma filosofia de jogo
superior; tratava-se de uma equipa que aplicou essa filosofia numa época em que
o desporto se encontra em patamares elevadíssimos de velocidade; numa época em
que não há tempo para se jogar bonito, a equipa jogou lindíssimo e mostrou,
assim, o caminho. E, no entanto, tão poucos o compreenderam, tantos o
vilipendiaram.
Muitas foram as críticas tecidas ao jogo culé, mas apenas vamos reflectir sobre uma: a de que os jogos em que jogava o Barcelona eram
aborrecidos. E porque eram aborrecidos? Porque 80% do tempo era passado com
os blaugrana a trocar a bola, sem
objectividade… o que é, já, uma outra crítica derivada da primeira. Não vamos
entrar por aí, vamos antes entrar num mundo de fábula…
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barça vs. barça |
Nesse mundo, as pessoas perceberiam que o que tornava os jogos
desequilibrados, aparentemente repetitivos e monocórdicos, não era a filosofia barcelonesa,
mas muito mais a(s) dos seus adversários! Perceberiam o que fazia o Barcelona,
como controlava o jogo, manietava o adversário, construía condições para ter
sucesso. E perceberiam o que faziam os adversários: esperavam por um momento
qualquer, um pormenor, um acaso, sacrificavam-se no altar do aleatório.
Nesse mundo, as pessoas não imaginariam um jogo Barcelona vs.
Barcelona como uma sequência bocejante de trocas de bola aparentemente sem
intenção. Nesse mundo, as pessoas perceberiam que o Barcelona nunca deixaria
que o Barcelona fizesse o que queria, o Barcelona lutaria com as mesmas armas
e, por conseguinte, o jogo tornar-se-ia algo muito diferente do que alguma vez
foi visto até agora. Pela oposição do Barcelona ao Barcelona, ambos os
Barcelonas se tornariam, necessariamente, melhores equipas ainda!
Nesse mundo, o paradigma do bom futebol evoluiria, e o jogo
tornar-se-ia ainda mais complexo, a um nível que não podemos verdadeiramente
adivinhar. Nesse mundo, este gigantesco quadrado de Qmin seria a norma, e não a
excepção.
Por ora, e enquanto se negar isto, continuaremos a sonhar, solitários.