sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Leitura do evangelho segundo Artur Semedo

Parábola da fábrica de parafusos
Chegada a hora nona, assomou ao centro do terreno, onde foi rodeado por aqueles que o seguiam. Tomando para si os coletes, começou a distribuí-los, dizendo: “O Reino dos Picaretas é semelhante a uma fábrica de parafusos que labore num país em que se desconheçam os pregos, os rebites e demais formas de fixação de estruturas. Todos os que nela trabalhem saberão apenas fabricar parafusos – uns somente saberão produzir parafusos com cabeça para chaves de fendas, outros, com cabeça sextavada – e serão os melhores fazedores de parafusos do mundo e viverão felizes. Todos, menos um proletário angustiado com a persistência da espiral sulcada no quotidiano da sua vida fastidiosa. Ele será olhado de soslaio, será amesquinhado e vexado, até que saia do seu país, vergado pelo peso do opróbrio. Mas regressará, enfim, do exílio, trazendo consigo as patentes de novas e brilhantes soluções para os mesmos problemas a que até aí apenas os parafusos davam resposta, desde há tempos imemoriais. E conquistará os corações dos que habitam nesse país, e tornará obsoletos os parafusos e todos os que dele troçaram, e toda a fábrica entrará em decadência e haverá grande choro e ranger de dentes entre aqueles que outrora nela obravam. Quem tiver ouvidos que ouça.”

Parábola do cruzamento
Vendo o tumulto que as suas palavras geravam junto da turba, chamou-os novamente a si, e começou a distribuir abraços, dizendo: “O Reino dos Picaretas assemelha-se, ainda, a um homem que todos os dias conduza para o emprego sem cuidar do semáforo no cruzamento diante de sua casa, atravessando a intersecção a grande velocidade. Porque nunca nada lhe suceda, continuará a passar assim, diariamente, esteja verde ou vermelho, haja trânsito ou não, de dia e de noite, com chuva ou sol. Porque nada lhe suceda, os que o conhecem nada lhe dirão e até lhe tecerão loas à atitude temerária que lhe consente chegar sempre a tempo a todos os compromissos. Virá, então, o dia em que será instalada uma câmara de controlo de tráfego e logo se sucederão as multas amiudadas. Esse homem, porém, terá já o coração endurecido de anos e anos, e continuará a passar como até aí, sem cuidar do semáforo. Até ao dia fatídico em que um camião carregado de parafusos que sobrarem da insolvência da fábrica o esmagar, e haverá então grande choro e ranger de dentes entre aqueles que outrora o exaltavam. Quem tiver olhos que veja.”

Explicação das parábolas e apologia dos anões
Chegando ao fim das suas palavras, e vendo que estavam cansados e com fome, enviou-os para o banho, para que se pudessem preparar e regressar a casa antes do anoitecer. Todavia, três dos que o seguiam, os quais eram os seus mais humildes e dedicados discípulos, abeiraram-se dele e interrogaram: “Mister, que querem dizer as tuas palavras? Conta-nos, para que percebamos e façamos a tua vontade”. Olhando-os com ternura, baixou-se e começou a desenhar no chão. Tendo esperado em silêncio longos minutos, um deles suplicou, desolado: “Não desejas que saibamos mais que aquilo que sabemos? Porque nos fechas a porta para o conhecimento?” “Em verdade, em verdade vos digo – retorquiu – não há nada que vos possa ensinar que não me ensineis igualmente vós a mim, pois tendes os corações abertos e com eles dareis respostas que jamais os ouvidos humanos ouviram antes. Benditos sejam os pequenos e humildes que suam e sangram em nome do reino da bola!”
Vendo que eles não o compreendiam, continuou “Tal como na fábrica de parafusos se acreditava que bastaria continuar a fazer parafusos, sem se questionarem, cada um com uma profissão muito específica dentro da cadeia de produção, bem assim no Reino dos Picaretas se julga que cada um deve cumprir apenas com a sua função em campo, sem que tenha de perceber os consecutivos e irrepetíveis problemas que lhe são colocados defronte. Já o homem que passava sempre no semáforo sem dele cuidar é aquele picareta que decide e executa sempre da mesma forma. Porque teve sucesso quando lhe era fácil ter sucesso, continua a insistir, mesmo quando a realidade se torna mais agreste, e as condições pedem outra coisa diferente. Quando lhes tirarem a todos eles os contextos específicos em que são bem-sucedidos, quando lhes tirarem as suas capacidades de especialistas, esses súbditos do Reino serão apenas cinza e pó sem valor.
Por fim, o homem exilado é aquele que acredita no contrário, que quer que todos pensem e achem a cada momento outros recursos ainda, diversos dos seus. Por isso, esse será o homem que conseguirá mais vitórias. Em verdade, em verdade vos digo: se olhardes e verdes e pensardes verdadeiramente, estareis junto a ele, até ao fim dos tempos."

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