Parábola da fábrica de parafusos
Chegada a hora nona, assomou ao centro do terreno, onde foi rodeado
por aqueles que o seguiam. Tomando para si os coletes, começou a distribuí-los,
dizendo: “O Reino dos Picaretas é semelhante a uma fábrica de parafusos que
labore num país em que se desconheçam os pregos, os rebites e demais formas de fixação
de estruturas. Todos os que nela trabalhem saberão apenas fabricar parafusos –
uns somente saberão produzir parafusos com cabeça para chaves de fendas,
outros, com cabeça sextavada – e serão os melhores fazedores de parafusos do
mundo e viverão felizes. Todos, menos um proletário angustiado com a persistência
da espiral sulcada no quotidiano da sua vida fastidiosa. Ele será olhado de
soslaio, será amesquinhado e vexado, até que saia do seu país, vergado pelo
peso do opróbrio. Mas regressará, enfim, do exílio, trazendo consigo as patentes
de novas e brilhantes soluções para os mesmos problemas a que até aí apenas os
parafusos davam resposta, desde há tempos imemoriais. E conquistará os corações
dos que habitam nesse país, e tornará obsoletos os parafusos e todos os que
dele troçaram, e toda a fábrica entrará em decadência e haverá grande choro e
ranger de dentes entre aqueles que outrora nela obravam. Quem tiver ouvidos que
ouça.”
Parábola do cruzamento
Vendo o tumulto que as suas palavras geravam junto da turba, chamou-os
novamente a si, e começou a distribuir abraços, dizendo: “O Reino dos Picaretas
assemelha-se, ainda, a um homem que todos os dias conduza para o emprego sem cuidar
do semáforo no cruzamento diante de sua casa, atravessando a intersecção a
grande velocidade. Porque nunca nada lhe suceda, continuará a passar assim,
diariamente, esteja verde ou vermelho, haja trânsito ou não, de dia e de noite,
com chuva ou sol. Porque nada lhe suceda, os que o conhecem nada lhe dirão e
até lhe tecerão loas à atitude temerária que lhe consente chegar sempre a tempo
a todos os compromissos. Virá, então, o dia em que será instalada uma câmara de
controlo de tráfego e logo se sucederão as multas amiudadas. Esse homem, porém,
terá já o coração endurecido de anos e anos, e continuará a passar como até aí,
sem cuidar do semáforo. Até ao dia fatídico em que um camião carregado de
parafusos que sobrarem da insolvência da fábrica o esmagar, e haverá então
grande choro e ranger de dentes entre aqueles que outrora o exaltavam. Quem
tiver olhos que veja.”
Explicação das parábolas e apologia dos anões
Chegando ao fim das suas palavras, e vendo que estavam cansados e com
fome, enviou-os para o banho, para que se pudessem preparar e regressar a casa
antes do anoitecer. Todavia, três dos que o seguiam, os quais eram os seus mais
humildes e dedicados discípulos, abeiraram-se dele e interrogaram: “Mister, que
querem dizer as tuas palavras? Conta-nos, para que percebamos e façamos a tua
vontade”. Olhando-os com ternura, baixou-se e começou a desenhar no chão. Tendo
esperado em silêncio longos minutos, um deles suplicou, desolado: “Não desejas
que saibamos mais que aquilo que sabemos? Porque nos fechas a porta para o
conhecimento?” “Em verdade, em verdade vos digo – retorquiu – não há nada que
vos possa ensinar que não me ensineis igualmente vós a mim, pois tendes os
corações abertos e com eles dareis respostas que jamais os ouvidos humanos
ouviram antes. Benditos sejam os pequenos e humildes que suam e sangram em nome
do reino da bola!”
Vendo que eles não o compreendiam, continuou “Tal como na fábrica de
parafusos se acreditava que bastaria continuar a fazer parafusos, sem se
questionarem, cada um com uma profissão muito específica dentro da cadeia de
produção, bem assim no Reino dos Picaretas se julga que cada um deve cumprir apenas
com a sua função em campo, sem que tenha de perceber os consecutivos e
irrepetíveis problemas que lhe são colocados defronte. Já o homem que passava
sempre no semáforo sem dele cuidar é aquele picareta que decide e executa
sempre da mesma forma. Porque teve sucesso quando lhe era fácil ter sucesso,
continua a insistir, mesmo quando a realidade se torna mais agreste, e as
condições pedem outra coisa diferente. Quando lhes tirarem a todos eles os
contextos específicos em que são bem-sucedidos, quando lhes tirarem as suas
capacidades de especialistas, esses súbditos do Reino serão apenas cinza e pó
sem valor.
Por fim, o homem exilado é aquele que acredita no
contrário, que quer que todos pensem e achem a cada momento outros recursos
ainda, diversos dos seus. Por isso, esse será o homem que conseguirá mais
vitórias. Em verdade, em verdade vos digo: se olhardes e verdes e pensardes
verdadeiramente, estareis junto a ele, até ao fim dos tempos."
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