sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Louvor e simplificação de Artur Semedo, com figurinhas e tudo...

De entre todas as realizações que a mente humana possa engendrar, decerto as que mais causarão esse tipo de reacções bipolares de que falámos serão os raciocínios pejados de polissílabos e quaisquer formulações gráficas que possam fazer lembrar, mesmo que remotamente, esse conjunto aterrorizante de saberes, a matemática. Isto, acreditamos, dever-se-á a que ambas se encontram fundeadas na lógica, com a qual muito poucos querem conversa. Visto que não queremos que falte nada a quem não nos lê, e como das primeiras já temos vindo a disponibilizar exemplos a rodos, temos que:

fig. 1

Parece-nos óbvio que isto dispense demais explicações. Porém, e só pelo prazer da verborreia, deixaremos algumas pinceladas analíticas ao proposto.
Imaginemos, pois, que num jogo de futebol concorrem duas equipas, X e Y, a que aqui, e por conveniência, chamaremos X e Y. Visto que, mesmo ao mais baixo nível competitivo, se verá sempre pelo menos uma centelha de organização, um lampejo de uma ideia de como jogar, consideremos que, quando duas equipas jogam, o seu caminho se encontra já cruzado algures para lá do ponto zero. Antes ainda de perceber como joga cada uma das equipas, analisemos a qualidade individual ao dispor do treinador, isto é, saibamos, em média, quais os atributos físicos, técnicos, intelectuais, psicológicos dos jogadores: são rápidos, lentos, resistentes, ágeis, toscos, anomalias da motricidade humana?; são capazes de executar em conformidade os movimentos fundamentais com bola (recepção, passe, remate, condução…), e até que grau de oposição adversária conseguem manter essa qualidade?; são capazes de entender o que o jogo exige deles, decidir em conformidade, criar soluções novas, e com que velocidade de pensamento-acção?; são capazes de se manterem calmos sob pressão, inclusivamente advinda de factores exógenos ao jogo?... e por aí fora, adiante. A esse valor médio dos que constituem o plantel, chamaremos de i, de indivíduo, e atribuiremos a imagética de uma camisola, só porque sim. Como está bom de ver, Xi e Yi correspondem à qualidade individual média da equipa X e Y, respectivamente. Do mesmo modo, Xc e Yc correspondem à qualidade colectiva, ou c, do jogo de cada equipa. No seguimento do que já afirmamos, essa qualidade é tão maior quanto mais organizado, complexo e completo for o seu jogo em todos os momentos do jogo. Quer isto dizer que uma equipa que ataque sempre em transições ofensivas, forçando-as mesmo quando não deve, está num patamar inferior ao de uma outra que o faz quando tem de ser, e, no restante, promove um futebol de ataque em organização, com posse de bola, inteligência e critério; ou ainda que uma equipa que defende homem a homem é inferior a uma equipa capaz de dominar a defesa zonal com rigor. Porquê? Porque os primeiros exemplos demonstram menos capacidade de entender o jogo e, por conseguinte, controlá-lo.

Da relevância das omeletes
Seguindo o senso comum, o índice de i deveria ser, no fundo, o equivalente ao mínimo esperado do desempenho colectivo, ou seja, se as competências médias dos jogadores atingem determinado valor, presume-se que um treinador minimamente competente consiga levar a equipa a explanar um futebol consoante com a qualidade dos recursos disponíveis. Nem sempre é assim, no entanto. O valor efectivo do c nem sempre está acima ou, pelo menos, ao mesmo nível que o do i.
fig. 2
No caso de Xc <=> Xi, o resultado verificado é Xc > Xi. Em sentido contrário, Yc < Yi. Da amplitude de variação entre os dois parâmetros, conjugada com as posições relativas que os mesmos ocupam no eixo da equipa respectiva, podemos inferir das hipotéticas razões que justifiquem essa relação. Vejamos, primeiro, Xc > Xi: uma tal largueza poder-se-á dever meramente a um miraculoso acaso ou a uma falácia estatística (em que, na verdade, se se considerar apenas os jogadores habitualmente utilizados o valor de i será muito superior ao valor obtido para todo o plantel, casos a que se soeu chamar de plantel desequilibrado)? Ou não será mais provável que o treinador tenha conseguido incutir nos seus jogadores uma forma de jogar que exponencie as qualidades e mascare os defeitos de cada um deles, fazendo com que, no geral, o resultado se revele muito superior ao que seria esperado, analisando-se os particulares? Aliás, é sequer expectável que, com um plantel que denote uma qualidade individual média como esta, haja lugar para desequilíbrios assim tão gritantes dentro do mesmo? Já em Yc < Yi, a diferença aparece-nos muito mais esbatida, deixando-nos adivinhar que o maior problema talvez resida na incapacidade de operacionalizar, por parte do treinador, as suas ideias de jogo, ou que estas, não sendo tão más quanto se possa pensar, não sejam as mais adequadas aos recursos de que dispõe, os quais, se observarmos, não relevam de grande categoria.
Daqui induziremos ditatorialmente que, regra geral, quanto mais além o valor de c estiver em relação ao de i, mais provável será que essa distanciação se deva de facto ao trabalho do treinador e à qualidade do seu modelo de jogo, e menos a detalhes, aleatórios ou estatísticos; no sentido inverso, quanto mais aquém estiver c de i, menos capaz o treinador há-de ser. Existem decerto limites ao que o treinador possa acrescentar a uma equipa. A partir de certo nível de qualidade individual ao seu dispor, apenas um treinador de génio conseguirá oferecer ainda mais que aquilo que os seus recursos prometem à partida (fig. 2). Do mesmo modo, quando a qualidade individual é de facto medíocre, torna-se impossível aplicar um modelo de jogo tão complexo que exija dos jogadores capacidades que eles não possuem. Quer isto dizer que nem sempre o valor colectivo observável de uma equipa reproduz fielmente a idealização do seu treinador – resta, a este, continuar a insistir no trabalho diário para tentar aproximar a realidade do projectado por si. No sentido oposto, são bem menores os limites à destruição que um conjunto de más ideias e más práticas podem produzir numa panóplia de abundantes soluções.
Resumindo este segmento ao prosaico desenvolvimento de uma consumada máxima: não se consegue fazer omeletes sem ovos, mas nem sempre precisas dos melhores ovos para que ela fique saborosa, e, outrossim, não basta ter de facto os melhores ovos para que o resultado seja delicioso. O segredo está nos ingredientes extras e no bem mexer…

Da mirífica diagonal do sucesso
fig. 3
Usemos, agora, esta construção teórica para inferir das possibilidades de cada equipa, à partida, no que à vitória diz respeito. Visto que o fundamental do futebol é o processo colectivo, analisemos o quadrilátero definido pelos pontos [0,Xc,c,Yc]: um rectângulo em que uma das dimensões (neste caso, a largura: 0,Xc) se apresenta claramente inflacionada em relação à outra. Quão mais desproporcional for esta relação, seja em que sentido, maior vantagem retirará dela a equipa que se encontre mais além no seu próprio eixo. Pelo contrário, se o resultado for ou se assemelhar a um quadrado (fig. 3), podemos esperar um jogo colectivamente equilibrado. Não necessariamente de qualidade, mas a isso voltaremos. Quanto à individualidade, o rectângulo formado por [0,Xi,i,Yi] acaba por ser menos distendido no sentido da largura que o anterior, fruto, já da menor importância do individual em X, já das capacidades individuais médias estarem acima do modelo de jogo, em Y. Fosse o futebol um jogo em que predominasse o factor individual, e as probabilidades de vitória da equipa X diminuiriam na mesma razão em que aumentariam as de Y. Porém, o que realmente se verifica é que mesmo a menor das grandezas de X (Xi) se consegue sobrepor à maior das valias adversárias (Yc). Arriscaríamos até a dizer que bastariam essas individualidades de X, mesmo que sem se exibirem ao seu melhor nível colectivo, para se sobreporem ao colectivo de Y.
Surge-nos ligado a essa crença o ponto m, que resulta do cruzamento dos atributos menores de cada equipa. Este pode ser um ponto diferente quer de i quer de c, sendo então, Xc > Xi e Yc < Yi (como é o caso) ou Xc < Xi e Yc > Yi; ou ser equivalente a um deles, sendo então Xc > Xi e Yc > Yi  (fig. 3) ou Xc < Xi e Yc < Yi; ou, ainda que muito pouco provável, equivalente a ambos, caso em que, necessariamente, Xc = Xi e Yc = Yi. De entre todas estas possibilidades, surge-nos como altamente verosímil que, se m resultar diferente quer de i quer de c, a equipa em que c>i parte com vantagem, à partida, para o jogo, e, outrossim, que essa vantagem será tanto maior quanta a diferença entre Xc e Yc. Já a equipa que estiver na situação inversa verá as suas possibilidades serem absorbidas por aquilo a que chamamos de P, de pormenor puro. Ou seja, a equipa cujo individual se sobrepõe ao colectivo e que, sobretudo neste factor, está muito aquém do adversário, fica mais refém daquilo que os seus jogadores, por si só, sejam capazes de trazer ao jogo. Isto não quer dizer que o pormenor não exista sempre, diluído nas áreas acima descritas. Simplesmente, neste caso, ele assumir-se-á como que sendo uma substância autónoma, e, igualmente, imprevisível.
Resumindo, a nossa visão do que é a probabilidade de uma equipa sair vencedora de uma partida de futebol baseia-se em três alicerces fundamentais: o seu colectivo ser superior ao seu individual; o seu colectivo ser o mais evoluído possível dentro das limitações impostas pelo seu individual; o seu colectivo ser superior ao colectivo do adversário. Tudo isto releva do mesmo: o jogo colectivo é que prepondera, a longo prazo, nos resultados (fig. 4).
fig. 4

Parêntesis: da importância do segundo pilar.
(O seu colectivo ser o mais evoluído possível… que tem isso de fundamental? Tem a negação do ?, sinal que, por esta altura, esperamos nós, estaria já a fazer certa confusão na cabeça de quem não nos lê. Que representa este ? no grande plano da criação? Obviamente, o aleatório. ? é a soma de tudo o que, podendo acontecer num jogo, não depende nem dos valores de c nem de i. Tentar negar o ? é tentar negar o caos, é tentar controlar o jogo, é aplicar um modelo complexo e inteligente, é saber que se vai falhar algures, mas que no dia seguinte se irá tentar de novo, falhar novamente, falhar melhor.)

Da contribuição de cada um para melhorar o mundo
Partindo dessa abstracção mondriânica, passámos pela análise dos valores intestinos de cada equipa e, daí, avançámos para as relações de força entre os valores de ambas e consequências ao nível das probabilidades de vitória a curto e longo prazo. Juntemos agora as mãos e percebamos como a qualidade de uma partida resulta do somatório do que cada equipa lhe é capaz de oferecer, e não propriamente de tudo o que sucede durante os noventa minutos mais os extras. Quer-se com isto afirmar que tudo o que dependa de ?, que tudo o que não seja provocado com intuito, se não colectivamente, pelo menos individualmente, é não-qualidade, é um sub-produto inferior de circunstâncias específicas e irrepetíveis.
Temos, assim, aquilo a que podemos chamar a qualidade mínima esperada de um jogo, Qmin. Visto que esta se representa pelo quadrilátero definido pelos pontos 0, m, e pelos resultados das equações Xc <=> Xi e Yc <=> Yi, ela é tão maior quanto mais elevado for o valor destes últimos. Dito de outra forma, na fig. 1 o valor de Qmin é menor que o valor de Qmin na fig. 5 simplesmente porque neste segundo caso o quadrilátero [0,Xi,m=i,Yi] possui uma área maior que o quadrilátero [0,Xi,m,Yc] do primeiro. Será esta conclusão arbitrária? Não achamos. E não o achamos porque quanto mais uma equipa der ao jogo, mais a outra terá de responder na mesma moeda. Um desequilíbrio gritante de qualidade entre duas equipas tenderá a levar a mais forte a relaxar, a não aplicar em campo todo o seu potencial, pois tal não se verifica necessário para cumprir o desiderato vitorioso.
fig. 5
Além disso, e como se soeu dizer, ninguém gosta de ver bater em mortos, e se uma equipa não se encontra capaz de se opor à outra é simplesmente isso que sucede em campo.
Existem, depois, outros acrescentos possíveis à qualidade de um jogo, aqui assinalados como Q+. Estamos a falar, como se verifica facilmente, daquilo que é a diferença entre os valores de c e i em cada equipa, ou seja, se a equipa X do nosso caso primordial dará, à partida, e no mínimo, o seu valor de i ao jogo, pode ainda oferecer-lhe o que vai acima, até atingir a valia do c. Mais uma vez repetimos: entrará na equação o que se considera Q+ quanto maior a oposição que cada equipa oferecer à outra. Somando, assim, Qmin com os valores de Q+, o que nos surge não será, necessariamente, o valor da Q total ou Qmax. Dependerá da existência autónoma, como descrita acima, de um valor de P. No fundo, P equivale, no que à análise da qualidade geral de uma partida diz respeito, a mais um Q+. Simplesmente, torna-se menos previsível que tenha importância, é como que um elemento volátil, que tanto pode aparecer quanto desaparecer sem aviso.
Concluindo, o futebol, enquanto espectáculo, só tem a ganhar com a melhoria dos modelos de jogo em todas as equipas, o que nos leva a uma reflexão final…

Das aspirações meta-estéticas de um solitário
Dificilmente o desporto mais amado no mundo terá alcançado tais píncaros como os que foram atingidos pela equipa de Barcelona aos comandos de Guardiola. Não se tratava somente de uma equipa com uma filosofia de jogo superior; tratava-se de uma equipa que aplicou essa filosofia numa época em que o desporto se encontra em patamares elevadíssimos de velocidade; numa época em que não há tempo para se jogar bonito, a equipa jogou lindíssimo e mostrou, assim, o caminho. E, no entanto, tão poucos o compreenderam, tantos o vilipendiaram.
Muitas foram as críticas tecidas ao jogo culé, mas apenas vamos reflectir sobre uma: a de que os jogos em que jogava o Barcelona eram aborrecidos. E porque eram aborrecidos? Porque 80% do tempo era passado com os blaugrana a trocar a bola, sem objectividade… o que é, já, uma outra crítica derivada da primeira. Não vamos entrar por aí, vamos antes entrar num mundo de fábula…
barça vs. barça
Nesse mundo, as pessoas perceberiam que o que tornava os jogos desequilibrados, aparentemente repetitivos e monocórdicos, não era a filosofia barcelonesa, mas muito mais a(s) dos seus adversários! Perceberiam o que fazia o Barcelona, como controlava o jogo, manietava o adversário, construía condições para ter sucesso. E perceberiam o que faziam os adversários: esperavam por um momento qualquer, um pormenor, um acaso, sacrificavam-se no altar do aleatório.
Nesse mundo, as pessoas não imaginariam um jogo Barcelona vs. Barcelona como uma sequência bocejante de trocas de bola aparentemente sem intenção. Nesse mundo, as pessoas perceberiam que o Barcelona nunca deixaria que o Barcelona fizesse o que queria, o Barcelona lutaria com as mesmas armas e, por conseguinte, o jogo tornar-se-ia algo muito diferente do que alguma vez foi visto até agora. Pela oposição do Barcelona ao Barcelona, ambos os Barcelonas se tornariam, necessariamente, melhores equipas ainda!
Nesse mundo, o paradigma do bom futebol evoluiria, e o jogo tornar-se-ia ainda mais complexo, a um nível que não podemos verdadeiramente adivinhar. Nesse mundo, este gigantesco quadrado de Qmin seria a norma, e não a excepção.

Por ora, e enquanto se negar isto, continuaremos a sonhar, solitários.

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