segunda-feira, 24 de agosto de 2015

O sentido da vida é só cruzar

Um cruzamento é, numa perspectiva simplista, a intersecção de duas linhas. No futebol, as linhas que constituirão um cruzamento serão a percorrida pela bola, mais ou menos paralela à linha de golo, e o corredor central do campo, que, mais que mera linha, será o plano que unirá longitudinalmente as duas balizas. Algures no tempo, e por alguma razão, para nós um tanto ou quanto obscura, passou-se a considerar que a melhor forma de chegar ao golo seria materializar essa disposição cruciforme vezes sem conta, até que um jogador conseguisse, enfim, interceptar a trajectória do esférico, arremetendo-o na direcção das redes adversárias. Por alguma razão, ainda mais obscura, esse paradigma continua a alimentar as crenças de milhares de feéricos treinadores de bancada, que reclamam, vociferantes, de cada vez que uma bola se projecta para lá dos limites laterais da área, que a mesma seja de imediato cruzada. Por alguma razão, tão obscura que se julga que nem a própria luz dela consegue escapar, alguns ditos treinadores, com cursos certificados por altas instâncias e tudo, fazem coro com aqueles.
Permitir-nos-emos, com a insolência dos ingénuos, tecer algumas considerações…

Truísmo: a forma mais rápida de conseguir marcar um golo seria, partido do centro do campo, seguir em linha recta até à baliza, sem desvios. Infelizmente… existem adversários. Assim sendo, torna-se necessária uma sequência de movimentos que, desviando a bola dessa linha óptima, fazendo-a navegar por outras partes do campo, a possam trazer novamente até às proximidades desse eixo maior, até que, finalmente, ela chegue ao seu destino primordial. Ora, parece-nos claro e evidente que, quanto menos a bola se tiver de desviar desse corredor central, melhor será para quem ataca, pois mais circunjacente se encontrará do que, por sua vez, se soeu chamar de zona de finalização, isto é, daquela zona do campo em que, estando o jogador sem grande oposição, um remate não necessita de ser uma obra de génio, ou de beneficiar de um monumental falhanço do guarda-redes adversário, para que entre na baliza. Por isso advogamos que quanto mais uma equipa apostar no jogo interior, com qualidade, maiores as probabilidades terá de conseguir atingir o sucesso em cada jogada de ataque. Infelizmente… existem adversários. Assim sendo, poderá ser necessário alargar mais e mais o jogo atacante, quanto maior a qualidade e/ou grande densidade de canelas com que o adversário fechar os caminhos por esse corredor central. Não esquecendo, porém, o objectivo de, assim que surja a mais pequena hipótese, regressar ao centro, de preferência, com a bola pelo chão, controlada e orientada no sentido da baliza. Infelizmente… tudo isto dá trabalho, sobretudo a treinar. Achamos, por isso, que a primazia que o cruzamento conseguiu obter para si se deve, acima de tudo, ao carácter intrinsecamente preguiçoso do ser humano, que procura, sempre que possível, a solução que lhe faça despender a menor quantidade de recursos. Ir para a linha é, normalmente, rápido e relativamente fácil. Arranjar espaço para cruzar uma bola, também. Confiando nas probabilidades, veio a fé de que, algures entre dezenas de cruzamentos, alguma bola há-de ter um final feliz e beijar as redes.

O grande defeito deste estilo de jogo prender-se-á, na nossa perspectiva, com a anulação em larga escala do factor decisório. O futebol, reiteramos, é um jogo de inteligência, a vários níveis, sendo que, mais que a inteligência motora ou emocional, o que importa, o que verdadeiramente distingue os melhores dos bons, estes, dos medianos, e ainda estes, dos fracos, é a capacidade de analisar e decidir com maior ou menor qualidade perante contextos sempre diferentes a cada momento, diríamos que quase manipulando, a seu bel-prazer, a volubilidade do jogo. Ora, se uma equipa reduz a sua procura do golo a sucessivos cruzamentos, não há margem para grandes decisões, há sobretudo execução; logo, não há desafio ao adversário que defende, o qual apenas se tem de preparar convenientemente para responder a um conjunto de solicitações similares. Do mesmo modo, o que se passará dentro da área, salvas as raras excepções de jogadores geniais neste tipo específico de situação de ataque, será menos decisão por parte de quem procura dar uma sequência positiva ao lance, e mais mera disputa — quando se está a tentar, primeiramente, chegar a uma bola lançada pelo ar, isto é, que é pertença de ninguém, que espaço fica para decidir para onde se tentará rematar, caso, de facto, se chegue à bola?
O que não quer dizer que todos os cruzamentos, entendidos enquanto mera intersecção de linhas, como acima descrito, sejam inerentemente maus. Podem ser, de facto, a melhor decisão, quando haja, por exemplo, superioridade numérica ofensiva, ou quando o posicionamento defensivo seja tão deficitário que, para quem tenha capacidade técnica de o fazer, colocar a bola em determinado local seja mais um passe em forma de cruzamento que uma avé-maria para salvação das almas.

Posto isto, talvez se explique a fixação das massas pelo engodo do cruzamento. Lembremos essa frase tantas vezes repetida, perante um, mais um, cruzamento inócuo: «O cruzamento foi bom, só que alguém tem de aparecer». O que os aficionados desejam é, acima de tudo, ver disputas de bola. Não querem ver inteligência, não querem ver uma equipa a construir e criar de tal modo que cada golo pareça mais um passe para as redes que um verdadeiro esforço sobre-humano; não querem ver uma equipa a desafiar, a iludir, a manipular o adversário, querem, isso sim, que ela vença uma outra guerra, decidida ainda antes do apito inicial, contra as probabilidades.

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